Darwin e Deus

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Darwin e Deus - Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu Livros

Confira entrevista sobre livro que analisa a ascensão evangélica

Repórter Anna Balloussier mostra complexidade desse processo na obra 'O Púlpito'

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Tive a boa sorte de receber a incumbência de ler "O Púlpito", novo livro de Anna Virginia Balloussier, colega desta Folha, e entrevistá-la a respeito do trabalho. A reportagem sobre o livro saiu faz algumas semanas, mas ela me disse muitas outras coisas legais que não couberam no texto. Portanto, é com alegria que compartilho a íntegra da conversa abaixo. Minhas perguntas estão em negrito. Boa leitura!

Seus textos sobre o mundo evangélico sempre têm algum tipo de trocadilho e/ou piada com um ar mais pop, e isso foi mantido no livro. Como as suas fontes encaram isso? Existe algo de autoirreverência na visão dos evangélicos sobre si mesmos em alguns aspectos também?
Que vá com Deus esta caricatura do crente careta e severo, avesso a qualquer que não a graça divina. O que não pode é dar a entender que se está a rir deles, e não com eles. Como circulo há bastante tempo nas igrejas, me dou essa liberdade com pessoas mais próximas, que sei que não se incomodam, pelo contrário, são as primeiras a usar o humor para falar de si.

Anna Virginia Balloussier, repórter especial da Folha - Marcus Leoni/Folhapress

Se você seguir perfis como Gospelmente, Senhora Gospel etc., vai ver muito dessa autoirreverência. Ou mesmo na oratória de pastores mais despachados na fala, como o Silas Malafaia ou o Cláudio Duarte, que com o humor consegue falar sobre sexo com desembaraço para o público crente. Exemplo neste trecho do livro:

Um dos pastores mais populares no Brasil hoje, Claudio Duarte, é um exemplo. Ele diz que a prática onanista é pecado, mas sem a austeridade de líderes mais tradicionais, que franzem o cenho para anunciar o capiroto em tudo o que enxergam como bancarrota do espírito. Certa vez, durante uma pregação, fez piada sobre o marido que ao tomar um banho demorado, esqueceu-se de trancar a porta e deu de cara com a esposa. "Ela entrou, pegou ele naquela situação e falou assim: ‘Seu nojento, cachorro, porco, imundo’." Até que o camarada, com a mão ali, saiu-se com esta: "É meu, eu lavo na velocidade que eu quiser".

A diversidade de perspectivas e visões dentro do meio evangélico está muito bem demonstrada pelo livro, mas a impressão é que os líderes mais influentes tendem a cerrar fileiras de maneira bem menos plural na arena política. Você vê alguma chance de que isso possa mudar?
Essa liderança evangélica de projeção nacional, os "grandes nomes" que a gente tanto vê na mídia e nas redes sociais, que servem de farol para uma maioria de "peixes pequenos" de igrejinhas de bairro, tinha um pendor mais fisiológico no passado, se podemos colocar assim.

Baseado num versículo de Romanos que fala em autoridades constituídas por Deus, apoiavam o governante da vez argumentando que seria um dever bíblico orar e torcer por eles. Basta lembrar que, nos anos 2010, você tinha no retrato com o PT Silas Malafaia, Edir Macedo, Magno Malta, Feliciano, para citar nomes que depois repudiaram Lula e cia.

E ainda havia alguma diversidade. Cito como exemplo a eleição de 2010, em que três grandes galhos da Assembleia de Deus endossaram cada um um nome diferente: o Ministério Belém foi de José Serra, o Ministério Madureira de Dilma, e o Santo Amaro de Marina Silva.

A partir de 2018, houve uma convergência desses líderes todos ao bolsonarismo. Vejo três fatores pesando aqui:

1) a ascensão das redes sociais, que ajudou a polarizar a sociedade e fortalecer a ideia de uma esquerda alérgica a crentes;

2) o fortalecimento das chamadas causas chamadas identitárias (feminismo, direitos LGBTQIA+ etc.), que provocou o efeito backlash ante a ideia de que os valores cristãos estariam sob ameaça ("eles vão transsexualizar nossas criancinhas!");

3) A dificuldade da esquerda em falar o léxico evangélico, e também um preconceito ainda forte ao lidar com o segmento. Ou vem com tutela ("vamos iluminar esses bárbaros") ou com ofensa ("fascistas!"). Aí fica fácil, para o outro lado, conquistar esse eleitorado.

Como bônus, destacaria não só a maior afinidade ideológica entre esses pastores e Bolsonaro, mas um espaço inédito para eles em Brasília. Eram convidados para o Planalto, ocuparam cargos altos. Sentiram-se prestigiados para além da conveniência eleitoreira.

Uma coisa que me chama a atenção como católico é um tema que você aborda de leve, que é a coalização católicos conservadores/evangélicos nos temas de costumes. Ao mesmo tempo existe uma corrente anticatolicismo historicamente bem forte em muitas denominações. Você acha que isso pode aflorar na arena política e causar um racha em algum momento?
Nos anos 1980/1990, a rivalidade era maior. Na eleição de 1989, chegou-se a disseminar em igrejas que Lula iria fechar templos evangélicos para favorecer os aliados católicos —lembremos que o PT tem em sua formação uma forte base do catolicismo progressista da Teologia da Libertação.

Hoje eu diria que essa polarização não tem mais tanto eco, católicos vs. evangélicos --acho que é inclusive mais forte dentro do próprio catolicismo, entre alas ultraconservadoras/conservadoras e centristas/progressistas. Como no fogo cruzado entre a cúpula da CNBB e leigos católicos que a acusam de ser comunista (imagina!).

Até por restrições canônicas, católicos são menos dados à política eletiva. Um padre não pode se candidatar, e em teoria eles sequer podem fazer campanha nas igrejas, embora isso aconteça aqui e acolá. Evangélicos, não, pelo contrário.

Mas há mobilização católica no Congresso, em boa parte vinda do segmento carismático, e também muita mobilização do catolicismo conservador no Judiciário (teve um estudo ótimo do Instituto de Estudos da Religião a esse respeito). Então vemos parcerias em grandes causas, como a antiaborto.

Existe esse abismo entre a ideia de que as religiões afro ou o sincretismo de maneira mais ampla seriam a quintessência do Brasil em termos religiosos, de um lado, e o fato de que cada vez mais negros, pobres e periféricos, e mulheres, são evangélicos. Até que ponto você acha que a crença evangélica anda ganhando uma cara "especificamente brasileira" com essa mudança demográfica?
O perfil evangélico começou mais branco, porque era a religião dos imigrantes protestantes vindos da Europa e dos EUA. Mas a presença na população ainda era residual. Sobretudo depois do pentecostalismo, os evangélicos foram se tornando cada vez mais a cara da base brasileira. Hoje a maioria nas igrejas é negra, feminina e vinda de classes baixas. A questão é entender por que essa religião se popularizou tanto nas periferias. Diria que tem muito a ver com os laços comunitários que fornece, e também com perspectivas de mobilidade social —com a ajuda dos irmãos, o fiel quer prosperar.

O quanto você acha que uma visão ligada à Teologia do Domínio, para a qual não existe separação entre Estado e religião, tem se tornado dominante, sem trocadilho, entre as lideranças brasileiras hoje?
Os fundamentos dessa teologia, essa lógica colonizadora de impor sua fé pelo mundo, não foram invenção dos evangélicos, é importante dizer. Faz parte da história do cristianismo.

E tem também um certo alarmismo nesse tipo de afirmação. Ou, como a Carô Evangelista, que pilota o Instituto de Estudos da Religião, me disse um dia, nessa ideia de que a Teologia do Domínio é uma erva daninha que vai comer o mundo todo.

E ela acontece quase sempre sem dar nomes acadêmicos aos bois do cotidiano, já que o pastor não necessariamente para e pensa, "opa, que belo dia para continuar meu projeto de dominação". O processo é mais orgânico na prática.

Mas acho que dá para dizer com segurança que a expansão evangélica no Brasil catapulta essa estratégia meio War não só nos territórios da fé propriamente dita, mas em áreas como educação e política, que precisam ser dominadas para não deixar o "inimigo" (visto como ímpio) dominá-las antes.

Falando de uma forma geral, os crentes brasileiros passaram muito tempo preferindo distância do debate público. De umas três, quatro décadas pra cá, essa ideia foi mudando. Era preciso preencher os poros sociais todos para não os deixar cair em tentação, em vez de se contentar apenas com buscar para si uma vaga no céu. O lema "irmão vota em irmão" ganhou força na política, os meios de comunicação deixaram de ser canal do diabo.

Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros

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